Uma espécie de crime: Apresentação do Rosto de Herberto Helder, de Manuel de Freitas


capa e hors-texte de Carlos Ferreiro
&etc, 2001, esgotado



É certo que o sangue (masculino ou feminino), para além de energia vital ou simbólica, é já, metonimicamente, a presença da morte. Mas, em Apresentação do Rosto, tudo indica que a essência do crime (de um crime de lesa-pudor, se quisermos) está intimamente relacionada com a figura da mãe e com a afronta da sua morte. A haver, na aparente e convulsiva errância deste livro, um epicentro, este poderia muito bem ser ilustrado pelas palavras que nos dizem que "afinal a mãe estava morta" (AR, 1968, p.35). Sem o advérbio inicial, a frase passaria talvez por banal (ainda que pungente, dado o contexto). Acontece, de facto, que este "afinal" tem a faculdade de nos remeter para um episódio proustiano exemplarmente comentado por Beckett (cf. Beckett, 1990, pp.52-54). Resumindo, trata-se do momento em que o narrador da Recherche, passado um ano sobre a morte da avó, descobre, pela memória involuntária, que ela está morta - certeza bem diversa daquela, puramente exterior e factual, de que ela morreu. Pois só nesse momento passa a existir, em toda a sua extensão e intensidade, a certeza da morte (ou da morta). Lendo H.H., poeta da e na morte como o seu contemporâneo Ruy Belo, somos igualmente tentados a afirmar que a morte é a consciência da morte. Reforça-se, portanto, uma equivalência entre conhecimento e crime. Ou, se preferirmos, existe uma espécie de "morte posterior" (que é, afinal, a única verdadeira) e que poderia ainda ser relacionada com o propósito de "matar os mortos" retomado do Húmus de Raúl Brandão no poema homónimo de H.H.. Mas podemos facilmente ater-nos a Apresentação do Rosto, onde não faltam indícios desse crime violento:

Afinal a mãe estava morta, e a avó que empestava a casa estava morta, e morta estava aquela extraordinária rapariga de ancas altas, a que andava pela obscuridade, essa tinha a sua doença repugnante e estava morta.
Chegámos aqui a um ponto importante.
A minha teoria é a seguinte.
Matá-los não era possível, pois eles estavam todos mortos, sorrindo nos corredores, nas janelas, nos retratos.
Mas nós devíamo-nos sentir os executores.
A sua justa morte, posterior, deveria ter sido obra nossa, milagre, violência nossa.


(AR, 1968, p.35)

É de salientar, contudo, que o crime se apresenta na escrita herbertiana como um conceito (ou "teoria", para utilizar um termo mais simpático ao autor) quase inexaurível. Ao crime da execução (pelo "milagre" da memória) acresce, para o filho, o crime da sobrevivência. Escrever torna-se então uma dolorosa "expiação do crime obscuro de não ter morrido" (ibidem, p.44). O tema da culpa, invariavelmente relacionado com a morte da mãe, volta a surgir, com assinalável violência, nas páginas sobre uma fotografia de família:

A cabeça do filho é a morte da mãe - e o modo como está a mãe é que é o saber isso.

(ibidem, p.69)

(...)

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não estando propriamente relacionado (bom, na verdade, claro que está relacionado), ouça-se Herberto Helder a dizer "Este lugar não existe"


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