Os Passos em Volta, de Herberto Helder


Portugália, 1963



[capa da 9ª edição, revista, 2000 exemplares, Assírio & Alvim, 2006]


Poeta Obscuro

Acerca da frase - «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» - julgo haver alguma coisa a explicar. Para já não sei onde a li, se a li, pois bem pode ser que ma tenham referido e uma frase referida, não lida, torna-se menos do seu autor. Tracei-a a lápis na parede em frente da cama. Estava sempre a vê-la. Isto à noite, no meio da noite, quando de súbito abria a luz e dizia para mim mesmo: - Não estou cego. - Ou quando, acordando bastante tarde, verificava com surpresa que não tinha morrido durante o sono. Sofro destes tormentos da imaginação ou da sensibilidade desordenada. Neurose. «Faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» Mas na adolescência uma vontade crescia em mim: ser alguém com uma arma na mão, ter o amor dos outros. Inocência, pois as armas são perigosas, e o amor vira-se contra nós. Anos depois contemplava a bela frase, a humildade ardente dessa frase, e concluía que os caminhos do orgulho, que me haviam conduzido até ela, eram a minha solitária arma e a maneira de antecipar com vitoriosa alegria as várias mortes dos meus vários anos. Bem. Tenho algumas prateleiras com livros, meia dúzia de quadros e desenhos, uma dezena de discos. O quarto pode ficar subitamente cheio. «Ó bebedor nocturno, porque não envergas as vestes cerimoniais?», etc. - começo de um poema asteca dito em voz alta dentro do quarto, com fundo musical. Escolho: um trecho solene e ambíguo, de um ardor grave, irónico. Olho ao mesmo tempo para a reprodução de um desenho japonês: um delicado peixe fugitivo, uma onda enrolada. E a frase irredutível e orgulhosa: «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» As calças estão dobradas nas costas da cadeira, a camisa tomba a um canto, e eu estou nu em cima da cama. Faz muito calor. «Ó bebedor nocturno...», etc. Sei rodear-me de coisas poderosas pelo valor de emoção, de referência a qualidades íntimas e decisivas, e pelo seu desafio ao próprio sentimento de arrebatada fragilidade humana. Olho então o corpo e vejo as veias aflorarem a pele nalguns sítios, e os tendões exprimindo solidez e força, uma ideia apaixonada, vital, da matéria. E contemplo as formidáveis partes do corpo a trabalharem com uma espécie de avara riqueza, uma plenitude soturna que me intriga e encanta. Os pêlos fascinam-me. Crescem por todo o corpo, irrompem da carne com selvagem impulso, com raiva quase, vindos do mecanismo abstruso do corpo, para lá da frase onde se pede a Deus a maior, a irrevogável e contínua obscuridade. Ora eu estou nu, e ainda penso vagamente na divindade asteca, e a delicadeza dramática do peixe esgueira-se na música. Não é de modo algum a unidade, a inteireza, mas quando considero esta luta pela constância, a fidelidade, a permanência de certas inspirações e regras - vejo que se procura atravessar todos os fogos, mantendo intactas algumas virtudes: porventura um silêncio capaz de dar poder e dignidade à nossa morte. É pouco, bem sei, e talvez devêssemos fazer grandes coisas, duas ou três coisas verdadeiramente grandes, com que recomeçar o mundo. Mas quando Deus está defronte, na parede, e nos concede a obscuridade para a utilizarmos contra a sua magnificência, como uma arma insólita e enigmática, clandestina - quem pode ainda recomeçar seja o que for? O poema que se escreve - longo texto fluindo, denso e venenoso, a imitar a substância ao mesmo tempo vivificante e corruptora do sangue - não é sequer uma oferta dirigida a Deus. É ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade. Tremenda força, essa. Escrevo o poema - linha após linha, em redor de um pesadelo do desejo, um movimento da treva, e o brilho sombrio da minha vida parece ganhar uma unidade onde tudo se confirma: o tempo e as coisas. De modo que é um extraordinário triunfo tomar o papel entre duas mãos sábias e rasgá-lo aos bocadinhos, sorrindo. Nem precisa haver Deus como interlocutor de intenções e gestos. Nem logramos nunca os outros, os semelhantes, os próximos e afastados, os homens todos. Trata-se de orgulho, de inocência. Obscuros somos sempre, mesmo sem pedi-lo. Grande vitória que ninguém nos poderá arrebatar. Que nem mesmo Deus, se existisse... Etc.

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[versão transcrita da 9ª edição]


Herberto Helder no blog da Assírio & Alvim

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