121 Poemas Escolhidos, de Emanuel Félix


















capa de Marcolino Candeias
colecção Garajau
Salamandra, 2003


Mister Texas Johnson Contador de Histórias

A menos que os Estados Unidos disponham 
de um poderio aéreo incontestável, estamos sujeitos
a qualquer anão amarelo que tenha um canivete
Lyndon Johnson

essa versão
essa sua aversão
essa sua aos quadradinhos versão digamos Mister
                                                      Texas Johnson
da história do Anão-Amarelo-Que-
-Tem-um-Canivete
essa versão digamos
é demasiado
demasiado digamos
imprópria
p'ra dar às criancinhas
Mister Texas mesmo aos quadradinhos Johnson digamos
tenha modos
O.K.?
e essa também
essa também digamos sua ideia de
         Lady-Branca-De-Neve-Macbeth-
         -Varrendo-Com-Vassouras-De-Napalm-A-
         -Casa-Aos-Sete-Anões
essa também
digamos sua ideia
é demasiado
demasiado também digamos tenebrosa
mesmo para os adultos
mesmo para os adultos Mister Texas Johnson demasiado

faz maus sonhos

mesmo aos adultos
mesmo aos quadradinhos

bad dreams Mister Texas


A Palavra O Açoite

Todo o santo nevoeiro esta manhã de glória
pátria filha
um rugir absoluto
de botas um secreto
martelar de silêncio
filho
medo

Todo o santo silêncio este espanto este espesso
sangue suor e água e mar e mágoa
e o amor e o amor e o amor em reserva
o trigo inteiro e digo amor o dia
inteiro por ceifar

E toda a santa esperança este dia esta noite
este vago vagar de sulcos rodas rosas
rasas
a relva a alva
o alvo
corpo inteiro da esperança

Todo o santo nevoeiro esta pressa este instante
este loiro este negro este infante fantasma
e distante e distante
uma légua de mágoa

E toda a santa mágoa este dia esta noite
o discurso o nevoeiro a palavra o açoite
a glória pátria
filho
um rugir absoluto um rugir obsoleto
um secreto
martelar de silêncio

E toda a santa guerra esta manhã de mágoa
de silêncio de névoa este loiro este espesso
instante de ternura filho camuflada
de rodas sulcos rasas
rosas de fogo e afago

Toda a santa manhã esta espera este amargo
absoluto obsoleto medo filho por vir
o loiro infante o instante
todo alcácer-quibir

Fatucha Superstar, de João Paulo Ferreira

Fatucha Superstar
Realização e montagem: João Paulo Ferreira
Decoração e vestuário: Óscar Alves
Interpretação: Fefa Puttolini, José Cabecinha, José Manuel Rodrigues, João Carlos, Domingos Oliveira
Produção: Cineground
Super 8, Cor, 50minutos
Portugal, 1976
[exibido na Cinemateca Portuguesa a 24 de Janeiro de 2013]


"Há qualquer coisa que nos vai acontecer, ou será que um matulão o cu nos vem comer?". O filme começa assim e a partir daqui é sempre a descer. Os pastorinhos da Cova da Iria são, afinal, uns valdevinos. E Nossa Senhora de Fátima é nada menos que um travesti sofisticado e sensual, que gosta dos holofotes da fama, de sexo, drogas e "disco sound".
Bruno Horta


Fatucha Superstar, inspirado no musical Jesus Christ Superstar, é uma obra singular no cinema português. A obra de João Paulo Ferreira reinterpreta as aparições de Nossa Senhora de Fátima. Ao início observam-se várias imagens do santuário de Fátima o que nos leva a crer que o filme pode ter um carácter documental e sério, mas tudo isso se dilui ao fim de pouco tempo com a entrada dos actores que representam os três pastorinhos. Em cima de uma árvore surge Fatucha que promete aos pastorinhos sucesso e notoriedade no futuro. Cabarets, música disco, freiras, imagens psicadélicas, truques de magia, um descapotável e Deus, fazem parte deste fantástico universo. As músicas com letras sarcásticas pautadas com desejos carnais complementam-se com a imagem descomprometida e irreverente. Apesar do registo cómico e leviano, é um filme que vai para além de juntar os amigos numa produção para contar uma história.
Frederico Malaca


Embora a sua obra, iniciada em 1975, tenha acabado por focar muito mais fortemente questões políticas e sociais, João Paulo Ferreira realizou esta obra singular, Fatucha Superstar, num registo musical inspirado no Jesus Christ Superstar, de Andrew Lloyd Webber. Com a revolução ainda quente, Ferreira desconstrói aquele que foi um dos grandes alicerces do Estado Novo: as aparições de Nossa Senhora de Fátima. Se por um lado, Fatucha Superstar é fiel à estética hippie do musical de Webber – e a uma geração portuguesa da altura –, já Fátima, ou Fatucha, é um sofisticado travesti que surge aos três pastorinhos de óculos escuros e descapotável.
O filme abre com imagens de peregrinos em Fátima. Mas apesar desta introdução em registo documental, o que João Paulo Ferreira nos propõe é que revisitemos o mito, contando-nos a sua verdade acerca do mesmo. Num descampado, os três pastorinhos, Lúcia, Jacinta e Francisco dançam em enorme alegria, até que Jacinta (de bigode farfalhudo) tem uma premonição. Mas é a Francisco que Fatucha aparece. O rapaz imediatamente chama as suas irmãs para com ele testemunharem o estranho fenómeno. Fatucha canta aos pastorinhos, prometendo-lhes sucesso e notoriedade no futuro. Mas Francisco, mais do que inebriado pelas promessas, apaixona-se por esta insinuante mulher, a quem dedica uma canção, em êxtase bucólico: “Eu sinto a minha cabeça à roda, / o peito, espartilho, / não posso esquecer aquela gaja, / que é boa com’ó milho…” Surge então de novo Fatucha, também num solo, prometendo dar início à sua luta, não sem antes consultar Deus, que reage assim à sua proposta: “Mas que grande debochada…” Quando Fatucha surge novamente aos pastorinhos, dá-se início ao milagre, aqui em forma de passos de mágica. Ela faz surgir uma mesa, tira objectos de uma cartola, faz aparecer um sumo de laranja para os refrescar, transfigura Jacinta numa apelativa mulher. Mas algo não corre tão bem. Num passo mal ensaiado, faz desaparecer Jacinta, levando os seus irmãos a escorraçá-la. Fatucha foge para o carro e a tragédia adivinha-se. Qual Isadora Duncan, o seu véu fica preso à roda. Fatucha parece ter-nos deixado.
A meio desta sua reinterpretação das aparições, João Paulo Ferreira interrompe a narrativa para um insert – anunciado por um efeito de luzes psicadélicas –, que nos remete para o presente. Numa pista de dança, anjos, freiras e Deus, dançam despudoradamente. As personagens desta fábula entregam-se aos mais terrenos e carnais desejos. Num altar, ao fundo, a substituir a figura religiosa, esse outro objecto de culto bem mais pagão: um enorme falo. No final do filme, novo regresso ao tempo presente. Um grupo de amigos celebra Fatucha. Afinal, ela não morreu. Numa
derradeira homenagem, cantam-lhe em uníssono: “Oh Fatucha Superstar, porque andas tu o povo a enganar. / Oh Fatucha Superstar, olha que ainda te vão lixar”. J.F.

(Sinopse no site do Núcleo de Cinema da UBI  - sem identificação do autor)


Biofilmografia do Realizador
João Paulo Ferreira nasceu em 1943. Começou a fazer cinema em 1975, integrado no “Cineground”, grupo que se caracterizou por fazer uma primeira tentativa de comercialização de filmes Super 8, em pequenas salas de diversão (“boîtes” e clubes nocturnos), em Portugal.
Esses seriam aliás os lugares de eleição, na época, para a divulgação de uma cinematografia de carácter underground e, no caso de João Paulo Ferreira, também queer (como, aliás, aconteceu com o seu contemporâneo Óscar Alves, de quem foi assistente de realização e montador nos quatro filmes exibidos pelo Queer Lisboa, no ano passado).
Foi ainda membro do Núcleo dos Cineastas Independentes.
  • 1978 – Ruínas (Curta-Metragem de Ficção / Short Fiction)
  • 1977 – Tempo Vazio (Curta-Metragem de Ficção / Short Fiction)
  • 1976 – Os Demónios da Liberdade (Curta-Metragem de Ficção / Short Fiction)
  • 1976 – Fatucha Superstar (Longa-Metragem de Ficção / Feature Film)
  • 1975 – Trauma (Curta-Metragem de Ficção / Short Fiction)
(do site do Queer Lisboa - sem identificação do autor)

Memorando, mirabolando, de Luiz Pacheco


















Contraponto, 1995
1000 exemplares numerados e assinados

(...)
Esta questão da minha nótula, sem a revisão final, que não fiz por via da bêbeda e da chatice em que me chocaram os cortes da Censura e estes em si, ficou uma merda. Mas esquecerá, ou é pecado venial (por outra visão, minha, me honra: não pretendia dinheiro nem reclamo, mas retribuir as finezas daqueles todos do Centro de António Flores, a começar logo pela drª Odília Castelão, sem o que eu já estaria doido de todo, ou inválido, ou suicidado ou não sei como, há mais de 2 anos que me amparam e agora, creio, me farão tudo o mais, e foi por este impulso que a coisa começou, na bêbeda depois de ver A Morte em Veneza e ter sugerido ao Carlos aquilo que eu próprio podia fazer sozinho (mas a solução achada e praticada foi mais feliz), depois propondo-lhe, também por súbita inspiração, que ele logo agarrou, o meu depoimento, esta entrada no jornalismo magazinesco pipular (excluíndo a Notícia, onde o caso e as circunstâncias 3 anos atrás eram bem outras - a fome, a camaradagem e ternura (onde isso vai!) da Edite Soeiro para comigo) tem aspectos positivos:

- como experiência de escrita, inda que tosca e mal acabada, foi uma lição. Aspecto já sublinhado: no Século Ilustrado há mais censura oficial, na Notícia a merda do conjunto, a má-fama colonialista da revista, a menor projecção metropolitana (que é a que me interessa fundamentalmente), a obstrução da Edite. Claro, não é com coisinhas destas que poderei mostrar à Isabel, em rivalidade profissional, o que valho, que foi o que pretendi no Diário de Notícias há um ano, dar-lhe um bigode, uma ensinadela à caloira petulante que eu vira sair da casca, tão gira nesses traques de estreante! Mas a Isabel, agora, passou para arquivo. Deixou de ser a minha estrela polar. E desde ontem, menos. Ou nada. Ou menos que nada.
- efeito na revista Notícia. Veremos. Mas marquei um ponto meu. A reportagem-inquérito (se se fizer e como eu quero) sobre as cadeias é que já os pode abalar. Não o demonstram. É como o Rodinhas e mais malta, no caso do trecho publicado no Diário de Notícias. Como eu ontem tentei explicar ao Henrique e à Lena mas a conversa não foi longe, eu a aparecer em sítios donde, por todos os meios (e isto não é mania da perseguição; apoio-me em factos concretos), me escorraçaram, aliás sem que eu fizesse o mínimo esforço para os contrariar, forçando-os, insistindo, humilhando-me ou usando truques, os deles - isso era o que queriam, é uma vitória. Nem sequer desforra. Não vou ficar. Fui, mas só agora ou desde há poucos anos, solicitado e insistido, e chegou já por várias vezes, a minha altura de abanar que não a cabeça. É como a entrada da China na ONU. É o reconhecimento unânime da minha força, da injustiça que representa a táctica do abafador que eu detectara logo nos meus 20 anos e comecei a furar, de fora, sem lhes pedir nada, com o Contraponto meu e só meu e onde só eu mando. E donde os fui então excluindo, com a certeza inicial que nada se destrói em definitivo que não se substitua. Foi por esta táctica de preservar as rectaguardas e ir fazendo fogo com a artilharia à distância, cansando-os em guerrilha mais implantando novas estruturas que os fodi. Aí estão: o Cesariny, o Herberto, o Lima, a Natália, até mesmo o Alcambar. Não falando no Lisboa, no José Aurélio e no Manuel de Castro que, eu podendo, irão reaparecer em grande força. E até no António Tavares Manaças.
- vontade de intervenção, fora da literatice mas pela escrita ou Literatura. Uma experiência que me lembrei era recortar em paralelo com o meu tosco, propositadamente linear e directo, (quase) improvisado texto com as patacoadas que a Natália, Cesariny, etc., lançaram nesta mesma semana. Perante a comunidade portuguesa interessará mais o inquérito sobre o barroco ou um depoimento sobre o alcoolismo? as gracinhas gagás do Mário ou um problema que atinge todos (cá em casa, só escapa o puto: eu, H-L, Jovite somos todos vítimas, mais ou menos conscientes ou recuperáveis (e vítima, inocente essa, também é o puto e ele sabe-o) do paraíso artificial do álcool. Ainda ontem os vi beber, de seguida, com o propósito firme da bêbeda, amêndoas amargas e cervejas. Frustração e qual? mas eles andam nos 20 e tantos, o Jovite tem 37 parece 57. Multiplique-se isto por 8 milhões!
Este meu desejo de intervenção, tal como agora a reedição do Libertino, e - sei-o bem - com balas de borracha, não é graça. É uma aposta. Não por acaso. Como não por acaso a outra maluca da Natália propagandeia os barrocos, os Baías da Fénix Renascida. É à decadência que aspira, aonde se instala. A estes nem é preciso empurrar: caem, esbarrondados, de per se. Alegria minha nenhuma e até me fazem falta. Mas pegar-lhes ao colo, falta-me a paciência e a força. Até já o fiz, noutros tempos, forte estúpido! Voltando à formula do Gasset: mirada de zoólogo. Pois esta semana, com a chegada do Vítor, encontros inevitáveis (e para quê evitá-los?) com ele, Teresa, Zé Dantas, Isabel, Elsa, Manuel, o prof. alemão, os tipos da Estampa, não terei de usar apenas (e registar, depois, sendo significantes) o que neles vir? e como eu agir, entretanto? espectador de mim e é o que mais me importa.
A verdade é que observá-los, dizer uma piada ou duas, mesmo escrevê-las já sei que não os afecta. Eles já escolheram. Essa luta estúpida travei-a com Cesariny, Lima, Natália, uma dúzia doutros. Ficaram na mesma, isto é, foram às suas vidinhas. Comigo cá dentro é que não. Ainda aqui mo confirma o Ortega (op. cit. págs. 150-51). Vivemos de dentro para fora. Problema decisivo para uma ciência do carácter. Diz ele: «A personalidade experimenta no decorrer da vida duas ou três grandes transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória moral. Sem perder a solidariedade, melhor a homogeneidade radical com o nosso sentir da véspera, um dia percebemos que ingressámos numa nova etapa ou modulação do nosso carácter». A este chama (ele, Ortega) «câmbio radical». Mas isto implica uma atenção constante sobre si próprio. Andaria eu buscando, desde há mais de um ano, com mais precisão: desde o choque com o mundo da Elsa e o que me provocou a ameaça de embolia e a longa intermitente de recaídas convalescença de meses posterior, afinal são razões para me modificar e aproximar-me, penetrar vitalmente noutra órbita ou para me afirmar mais seguro da minha?
Dúvida que terei de esclarecer e esta semana talvez me proporcione dados curiosos. Ontem, por exemplo, o Calmon contou uma historieta de um puto que fazia 17 anos e queria ter relações, as primeiras, com uma mulher (ao que a Teresa se teria logo oferecido como voluntária, - a libertina! à caça de primícias) são caricaturas de um tipo sentimental que eu já não conseguirei preencher mas cujo arquétipo 1971 poderei, talvez, definir em teoria em oposição a estes outros que me rodeiam e são (serão apenas?) talvez também caricaturas de um outro sentido de vida no estar conviver e amar que, em Portugal, e na gentinha que conheço, não me presta. Há que procurar outra gente. Ou brutos selvagens, mas certos na sua inocência (aventura à Gauguin, a tentar ou na Beira, ou Minho ou África); ou hiper-civilizados produtos da sociedade de consumo de que a Teresa (e também a Luísa Lemos) já me parecem reflexos a sério. Mas com muito húmus lusitano a desbastar, talvez nunca.

Nachtmusik I, de Emmanuel Nunes

















Ensemble Contrechamps
Direcção de Mark Foster
em Degrés: Isabelle Magnenat (violino), Jürg Dähler (viola), Daniel Haefliger (violoncelo)
em Nachtmusik I: Isabelle Magnenat (violino), Daniel Haefliger (violoncelo), Sylvain Lombard (corne inglês), Ernesto Molinari (clarinete baixo), Andrea Bandini (trombone)
Accord, 1993


um excerto de Nachtmusik I pelo KNM Berlin dirigido por Manuel Nawri

Emmanuel Nunes _Nachtmusik I (excerpt) from KNM Berlin on Vimeo.


*
Emmanuel Nunes na página do Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa
Emmanuel Nunes na página do IRCAM 
 

Uma espécie de crime: Apresentação do Rosto de Herberto Helder, de Manuel de Freitas


capa e hors-texte de Carlos Ferreiro
&etc, 2001, esgotado



É certo que o sangue (masculino ou feminino), para além de energia vital ou simbólica, é já, metonimicamente, a presença da morte. Mas, em Apresentação do Rosto, tudo indica que a essência do crime (de um crime de lesa-pudor, se quisermos) está intimamente relacionada com a figura da mãe e com a afronta da sua morte. A haver, na aparente e convulsiva errância deste livro, um epicentro, este poderia muito bem ser ilustrado pelas palavras que nos dizem que "afinal a mãe estava morta" (AR, 1968, p.35). Sem o advérbio inicial, a frase passaria talvez por banal (ainda que pungente, dado o contexto). Acontece, de facto, que este "afinal" tem a faculdade de nos remeter para um episódio proustiano exemplarmente comentado por Beckett (cf. Beckett, 1990, pp.52-54). Resumindo, trata-se do momento em que o narrador da Recherche, passado um ano sobre a morte da avó, descobre, pela memória involuntária, que ela está morta - certeza bem diversa daquela, puramente exterior e factual, de que ela morreu. Pois só nesse momento passa a existir, em toda a sua extensão e intensidade, a certeza da morte (ou da morta). Lendo H.H., poeta da e na morte como o seu contemporâneo Ruy Belo, somos igualmente tentados a afirmar que a morte é a consciência da morte. Reforça-se, portanto, uma equivalência entre conhecimento e crime. Ou, se preferirmos, existe uma espécie de "morte posterior" (que é, afinal, a única verdadeira) e que poderia ainda ser relacionada com o propósito de "matar os mortos" retomado do Húmus de Raúl Brandão no poema homónimo de H.H.. Mas podemos facilmente ater-nos a Apresentação do Rosto, onde não faltam indícios desse crime violento:

Afinal a mãe estava morta, e a avó que empestava a casa estava morta, e morta estava aquela extraordinária rapariga de ancas altas, a que andava pela obscuridade, essa tinha a sua doença repugnante e estava morta.
Chegámos aqui a um ponto importante.
A minha teoria é a seguinte.
Matá-los não era possível, pois eles estavam todos mortos, sorrindo nos corredores, nas janelas, nos retratos.
Mas nós devíamo-nos sentir os executores.
A sua justa morte, posterior, deveria ter sido obra nossa, milagre, violência nossa.


(AR, 1968, p.35)

É de salientar, contudo, que o crime se apresenta na escrita herbertiana como um conceito (ou "teoria", para utilizar um termo mais simpático ao autor) quase inexaurível. Ao crime da execução (pelo "milagre" da memória) acresce, para o filho, o crime da sobrevivência. Escrever torna-se então uma dolorosa "expiação do crime obscuro de não ter morrido" (ibidem, p.44). O tema da culpa, invariavelmente relacionado com a morte da mãe, volta a surgir, com assinalável violência, nas páginas sobre uma fotografia de família:

A cabeça do filho é a morte da mãe - e o modo como está a mãe é que é o saber isso.

(ibidem, p.69)

(...)

*

o blog da &etc

não estando propriamente relacionado (bom, na verdade, claro que está relacionado), ouça-se Herberto Helder a dizer "Este lugar não existe"


Os Passos em Volta, de Herberto Helder


Portugália, 1963



[capa da 9ª edição, revista, 2000 exemplares, Assírio & Alvim, 2006]


Poeta Obscuro

Acerca da frase - «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» - julgo haver alguma coisa a explicar. Para já não sei onde a li, se a li, pois bem pode ser que ma tenham referido e uma frase referida, não lida, torna-se menos do seu autor. Tracei-a a lápis na parede em frente da cama. Estava sempre a vê-la. Isto à noite, no meio da noite, quando de súbito abria a luz e dizia para mim mesmo: - Não estou cego. - Ou quando, acordando bastante tarde, verificava com surpresa que não tinha morrido durante o sono. Sofro destes tormentos da imaginação ou da sensibilidade desordenada. Neurose. «Faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» Mas na adolescência uma vontade crescia em mim: ser alguém com uma arma na mão, ter o amor dos outros. Inocência, pois as armas são perigosas, e o amor vira-se contra nós. Anos depois contemplava a bela frase, a humildade ardente dessa frase, e concluía que os caminhos do orgulho, que me haviam conduzido até ela, eram a minha solitária arma e a maneira de antecipar com vitoriosa alegria as várias mortes dos meus vários anos. Bem. Tenho algumas prateleiras com livros, meia dúzia de quadros e desenhos, uma dezena de discos. O quarto pode ficar subitamente cheio. «Ó bebedor nocturno, porque não envergas as vestes cerimoniais?», etc. - começo de um poema asteca dito em voz alta dentro do quarto, com fundo musical. Escolho: um trecho solene e ambíguo, de um ardor grave, irónico. Olho ao mesmo tempo para a reprodução de um desenho japonês: um delicado peixe fugitivo, uma onda enrolada. E a frase irredutível e orgulhosa: «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» As calças estão dobradas nas costas da cadeira, a camisa tomba a um canto, e eu estou nu em cima da cama. Faz muito calor. «Ó bebedor nocturno...», etc. Sei rodear-me de coisas poderosas pelo valor de emoção, de referência a qualidades íntimas e decisivas, e pelo seu desafio ao próprio sentimento de arrebatada fragilidade humana. Olho então o corpo e vejo as veias aflorarem a pele nalguns sítios, e os tendões exprimindo solidez e força, uma ideia apaixonada, vital, da matéria. E contemplo as formidáveis partes do corpo a trabalharem com uma espécie de avara riqueza, uma plenitude soturna que me intriga e encanta. Os pêlos fascinam-me. Crescem por todo o corpo, irrompem da carne com selvagem impulso, com raiva quase, vindos do mecanismo abstruso do corpo, para lá da frase onde se pede a Deus a maior, a irrevogável e contínua obscuridade. Ora eu estou nu, e ainda penso vagamente na divindade asteca, e a delicadeza dramática do peixe esgueira-se na música. Não é de modo algum a unidade, a inteireza, mas quando considero esta luta pela constância, a fidelidade, a permanência de certas inspirações e regras - vejo que se procura atravessar todos os fogos, mantendo intactas algumas virtudes: porventura um silêncio capaz de dar poder e dignidade à nossa morte. É pouco, bem sei, e talvez devêssemos fazer grandes coisas, duas ou três coisas verdadeiramente grandes, com que recomeçar o mundo. Mas quando Deus está defronte, na parede, e nos concede a obscuridade para a utilizarmos contra a sua magnificência, como uma arma insólita e enigmática, clandestina - quem pode ainda recomeçar seja o que for? O poema que se escreve - longo texto fluindo, denso e venenoso, a imitar a substância ao mesmo tempo vivificante e corruptora do sangue - não é sequer uma oferta dirigida a Deus. É ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade. Tremenda força, essa. Escrevo o poema - linha após linha, em redor de um pesadelo do desejo, um movimento da treva, e o brilho sombrio da minha vida parece ganhar uma unidade onde tudo se confirma: o tempo e as coisas. De modo que é um extraordinário triunfo tomar o papel entre duas mãos sábias e rasgá-lo aos bocadinhos, sorrindo. Nem precisa haver Deus como interlocutor de intenções e gestos. Nem logramos nunca os outros, os semelhantes, os próximos e afastados, os homens todos. Trata-se de orgulho, de inocência. Obscuros somos sempre, mesmo sem pedi-lo. Grande vitória que ninguém nos poderá arrebatar. Que nem mesmo Deus, se existisse... Etc.

*

[versão transcrita da 9ª edição]


Herberto Helder no blog da Assírio & Alvim

*


Les Choses de Rien, dos La Tordue



Benoît Morel, Pierre Payan e Eric '"Fil" Philippon
Produzido por Michel Paginas e Noël Balen
Moby Dick, França, 1995


I.N.R.I. (ao vivo)



c't'à cause de toi tout ça
c't'à cause de toi
tout ceux qui vont chez toi
n'en reviennent pas

c'est d'toi qu'on cause mon gars
c'est d'toi qu'on cause
te défile pas comme ça
te défile pom, pom, pom...

ici pas d'faux départ
pas d'faux départ
trois jours plus tard et s'en revient
et s'en revient

on n'meurt qu'une fois nous aut'
on n'meurt qu'une fois
pas d'cinéma mon pot'
pas d'cinéma

nous on s'endort
on n'dit plus rien
c'est ceux autour
qu'ont du chagrin

on fait dodo tout con
dans un lit d'pierre
pas d'relations oh non
chez monsieur Pierre

on descend sans office
vers ceux qui déjà
on est pas tous des fils
à ton papa

pom, pom, pom, pom...

rest' sur ta croix j'te l'dis
reste sur ta croix
le saint esprit ici
ça n'prendra pas

qu'y'a-t-y d'mieux dans l'aut' monde
j'te l'demande comm' ça
et quand bien même on monte
mieux vaut bien vivre ici-bas

si par malheur
j'arrive chez toi
si par malheur
si par erreur
j'me r'trouve dans l'bleu
par erreur si
alors je t'en prie
sacré bon dieu
une seule fois
n'est pas coutume
si par erreur
j'me trompe de turne
si par malheur
je tombe chez toi
alors je t'en prie
un' dernière fois

envoie-moi au diable

*


a versão original pode ser ouvida no grooveshark

*

Gravikords, Whirlies & Pyrophones


antologia de música com instrumentos experimentais
produzida por Bart Hopkin
prefácio de Tom Waits
com Hans Reichel, Phil Dadson (From Scratch), Qubais Reed Ghazala, Jean-Claude Chapuis, Don Buchla, Michel Moglia, Ward Hartenstein, Harry Partch, Sugar Belly, Darrel de Vore, Clara Rockmore, Barry Hall, Jacque Dudon, Ken Butler, Tom Nunn, Sarah Hopkins, Robert Grawi, Susan Rawcliffe, Wendy Mae Chambers
Ellipsis Arts, 1998


Clara Rockmore interpreta «O Cisne», de Saint-Saëns, no Theremin




excerto de «Le Bal», com Hans Reichel no daxophone




Ken Butler





A Imaculada Concepção, de André Breton e Paul Éluard


tradução de Franco de Sousa
colecção Mocho
Estúdios Cor, s.d.


A ideia do devir

A perfectibilidade humana, pensámos muito nesta espécie de caça ao urso nas montanhas que se sapam a si mesmas antes de se tornarem montanhas que se sapam a si mesmas e são todavia montanhas. O urso em questão não desdenha de aparecer entre duas derrocadas ou duas elevações de buracos e outros acidentes no terreno. Nos seus olhos há vida e morte para dar e receber, o que não acontece sem uma certa consciência da estupidez. Vá! ao muro acabou-se. Mas aquilo que amava... Apontar! Talvez convenha cantar! Fogo! E dizer que talvez ainda me esperem!
A pequena volta que consiste em dar ao desgosto a forma de uma esperança terrível e desamparada não se faz sem o abandono de alguns cuidados de segunda ordem. A dor física nunca foi para nós senão a quinta roda do coche da carne. A confiança nunca se fez luz senão através dos postigos da observação. Prestar justiça nunca foi mais do que o primeiro termo e o menor de uma solução que pode cobrir os homens com o manto transparente da igualdade. Logo, nunca se está bastante seguro da vida para não se estimar a dos outros.
Botão do uniforme que não escolhi, botão que tem relevo a pequena granada do meu espírito, bem me diz que sou insubstituível. O céu era uma pena para o meu chapéu, a terra uma espora. O que me mata contudo é aquilo que merecia ter sido. Antes que se tivesse regulado os meus passos sobre a bússula a navegação muito longa prosseguia para me permitir produzir-me, eu, pequeno ciclone, muito orgulhoso. O Navio sobe a escada em caracol da tromba. Lá no alto dos degraus está surpreendido por ter de saltar no ar para não mais se mirar senão no futuro de um modo claro e franco.
Estas luvas de repulsa que tenho calçadas não foram cosidas para mim. E depois também que mãos são estas que tenho estendidas e para as quais as minhas mãos se estendem, que olhares são estes que lancei para tudo, estes olhares que tudo abandonava, que recordações são estas que mantêm aquilo que será?
Sem ascendência, sem descendência. A caixa das cartas está vazia na extremidade do jardim, ou melhor, não: ela atola-se na areia, está magnífica. Cada grão de areia é um aglomerado de parcelas provenientes da usura daquilo que só se usou para voltar a servir. O ponto que não alcancei está tão afastado como o ponto que alcancei. Foi daqui que parti, deste grão de areia mais pequeno que um dedal, ou deste cubo de praias indefinidamente a escorregar na mesa das repetições?
Se fosse para recomeçar, se fosse, para recomeçar... A roseira de espuma do mar está de pé a meu lado neste retrato poeticamente definitivo. Ainda me comparo com aquele que não poderia ser. Este ancião olha ao longe os seus bisnetos atirarem uns aos outros bolas de neve através da sua barba, esta criança sonha que morreu, a segurança do dia seguinte faz a ponte sobre o abismo que o separa da véspera. Toda a autoridade com a qual me reduzo na minha fraqueza amalgama as construções dos homens e do tempo.
Certamente, é bem menos que a soma se se considerar a diferença. Eis os pequenos remédios de hoje nos quais só entram ainda as flores do campo, eis sobre um coxim a última invenção toda emaranhada nos seus fios, eis o lindo ruído do esmagar de cascalho com os pés que se faz numa festa. No esquecimento completo dos terrenos estéreis, as descobertas em potência dormem o seu primeiro despertar. Aparecimento perturbante das noites escuras, um ser que se conheceu é um ser novo.
Quantos corredores e que corrida! É tão longe que não haverá ninguém a esperar a chegada. Os primeiros terão mil e mil vezes alcançado os últimos, de tal modo, apesar de tudo, a pista é pequena: ora, como nos defendemos bem, e com razão, de contar as voltas... Nas nossas breves relações com a existência o essencial é que tenhamos mantido um pouco o ritmo. A memória perde-se das curvas do trajecto. É por uma linha indefinidamente recta que a direcção é dada, que o regresso se tornou impossível. E o corredor ultrapassa-se... Tornou-se invisível. O seu dorso loucamente curvado faz parte integrante da encosta que trepa. É necessário que o seu dorso se estenda paralelamente a todos os dorsos curvados, a todos os dorsos admiráveis. Desgraça para aqueles que deles tiverem tentado fazer um pedestal, que será feito com estes abrigos das suas mãos caindo incessantemente num sufocante perfume de terebentina, que será feito com esta poeira que ainda obscurece o mundo, que será feito também com estas carreiras do pior nas verduras do mal, com estes oásis do melhor nos desertos do bem. As invisíveis barreiras do pensamento humano, as invisíveis barreiras dos corpos semelhantes sepultarão ao tombarem todos os inimigos do género humano.

O Copo dos Dados, de Max Jacob


tradução de Luiza Neto Jorge
capa de Soares Rocha
colecção Novas Direcções
Estampa, 1974


Os porcos de Isabel


Que pavor Moscovo, antes da alvorada! os criados ainda sem librél o gás a alumiar a cozinha! Porque me levantei, se ainda era de noite? Talvez achasse que era poético ou talvez quisesse, por uma vez, ver o sol erguer-se sobre Moscovo. Os criados estavam de pé em volta da mesa da cozinha; também havia uma coifa quadrada de camponesa, reconheci Isabel a pobrezinha! deram-lhe um pão já um tanto ratado, sem que ela agradecesse. Ao descer a alameda sombria onde havia uma única loja iluminada, deparo com Isabel com um enorme saco às costas e digo-lhe:
«Tem muitos filhos, minha pobre Isabel, e anda a penar para bem deles...»
«Não senhor Max! é para os meus porcos!»
E eu voltei para casa; junto ao lava-loiça, o meu pequeno mujique contemplava Moscovo, ainda fresquinha do seu banho de noite: perguntei-lhe pelos meus ovos e tivemos o cuidado de os experimentar na água, para sabermos quais os frescos: «Os mais pesados ficam para o meu almoço, os mais leves para os porcos da Isabel.»


O paraíso é todo em notas de música


O paraíso é todo em notas de música.
O magno Conselho é todo em mínimas e em semibreves e isto tão artisticamente entremeado que pareceria uma gravura antiga, não fora o movimento que o anima.
O Senhor é chamado de anjo do magno Conselho.

*

Um jantar de velhos não é nada divertido. Por prudência, ninguém diz nada. Vejo alguns deles muito pálidos, outros que bebem um copo de água turvado por certas drogas. «Faz mal em não provar esta torta - diz uma criada. - Esmerei-me a pensar no senhor, e o senhor quase lhe não tocou. Estragam-no com mimo!» Aos rapazes ninguém os estraga com mimos! eles é que se estragam por si próprios. A isso não posso eu remediar. Tendo entretanto sido pronunciado o nome da Srª X..., houve quem dissesse: «É uma peste!» Foi um escândalo surdo, apesar de toda a gente ser da mesma opinião. Num jantar de velhos, todos se deixam arrastar pelos seus remorsos pessoais ou pela sua alegria recheada de vitórias.